A Musicologia, um fundo do arquivo e biblioteca da Misericórdia de Lisboa

Desde a sua fundação, em 1498, e ao longo de mais de cinco séculos de atividade, a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa foi recolhendo um extenso património que conserva e administra, no sentido de alcançar os meios que lhe permitem dar resposta às obras de «acção social, de prestação de cuidados de saúde, de educação e cultura e promoção da qualidade de vida […]» (art.° 2.° dos Estatutos da SCML).
Há precisamente 26 anos, a Misericórdia de Lisboa, dava a conhecer um importantíssimo fundo musical, essencialmente dedicado à música litúrgica, dos séculos XVI ao XIX. Entre outros fundos arquivísticos à guarda do Arquivo Histórico da instituição, o fundo musical dado a conhecer na obra publicada na época, apresentava-se como um inventário para o público em geral e especialmente para os estudiosos de todo o registo bibliográfico de um fundo musical, com importância para uma coleção de música litúrgica, essencialmente constituída por peças escritas ou impressas maioritariamente no século XVIII.
O fundo musical, obra relevante no apoio ao trabalho dos musicólogos, permite, de certo modo, encontrar os necessários esclarecimentos para aspetos menos conhecidos mas implícitos à prática musical. No sentido de se encontrar as analogias que se terão criado entre essa música e a organização social e económica de então ou os vínculos que demarcam as diferentes categorias de recetividade ou de concordância do público, as alterações de vontades, o começo de novas estéticas ou mesmo as pressuposições com as diferentes artes.
A catalogação do fundo de exemplares com textos musicais permitiu preservar bens da Misericórdia de Lisboa, fornecendo elementos pormenorizados sobre cada exemplar, bem como a elaboração de um registo pormenorizado e individualizado, proporcionando a proteção do património musical da instituição. A divulgação de todas as espécies com textos musicais, permitiu responder aos pedidos de diversos investigadores da área da musicologia e simultaneamente estimular, por um lado, a pesquisa e análise dos livros propriedade da instituição, por outro, fomentar a investigação das peças musicais que foram elaboradas propositadamente para a Misericórdia de Lisboa, ou para outras entidades que vieram a ser integradas na Misericórdia.
Outros fundos musicais são conhecidos na cidade de Lisboa, embora pouco divulgados, destacam-se o fundo musical do Cabido da Sé de Lisboa e o não menos importante fundo da Irmandade de Santa Cecília, século XVI, Irmandade nascida no Convento do Espírito Santo da Pedreira e mais tarde sediada na Basílica dos Mártires, após o terramoto de 1755.
Fazem parte do fundo musical da Misericórdia de Lisboa, exemplares manuscritos que contêm textos musicais, seguindo-se os volumes impressos entre o século XVI e o século XIX.
Ao todo constituem o fundo, 245 cotas, 233 obras e 200 volumes tratados e conservados, originários de distintos acervos tais como o Museu de São Roque, nomeadamente 4 livros que fazem parte da coleção da capela de São João Baptista; 7 espécimes originários da Igreja de São Roque e do Cartório da Irmandade de São Roque; 189 volumes do Arquivo e Biblioteca da SCML, provenientes de diversos acervos, nomeadamente legados ou benemerências. Compreende ainda alguns exemplares que permaneceram temporariamente no Museu de São Roque.
Da totalidade das obras, 24 são manuscritas, destacando-se obras de interesse particular para a Irmandade de São Roque e da Misericórdia de Lisboa, nomeadamente a Novena de São Roque, composta por Frei José de Santa Rita Marques e Silva, (gravada no CD, anexo à obra “Fundo Musical”, vendido na Loja on-line da Cultura Santa Casa ou na Loja física do Museu de São Roque), e a peça com mesma designação, de compositor João Jordani, músico e compositor português do século XVIII/XIX.
A coletânea de livros impressos é constituída por 4 espécies do século XVI, 10 obras/8 volumes do século XVII, 153 obras/117 volumes do século XVIII e 42 obras/47 volumes impressos entre 1801 e 1900. Destes livros destacam-se os que foram impressos em Portugal e os realizados por autores portugueses, como por exemplo, Filipe de Magalhães ou Duarte Lobo, compositores que estiveram ligados à Misericórdia de Lisboa. Filipe de Magalhães, foi mestre da Igreja da Misericórdia, e Duarte Lobo, foi mestre da Igreja do Hospital de Todos-os-Santos.
Do fundo musical fazem parte: novenas, Antifonários, Missais, Evangeliários, Graduais, Processionários, entre outros.
Com a catalogação, inventariação e posterior publicação, a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa pretendeu divulgar e dar a conhecer peças musicais há muito esquecidas nas estantes da biblioteca e do arquivo. Para além da catalogação de todo o espólio musical, editou um compact disc, reproduzindo nele algumas obras relacionadas com Portugal – Anjo Custódio Lusitano, Rainha Santa Isabel; com Lisboa – Santo António e São Vicente; com a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa – Novena de São Roque e Festa da Visitação; com a atividade litúrgica da Misericórdia – Missa Solene.
Foram ainda interpretadas duas peças de órgão, recolhidas na Biblioteca Nacional de Lisboa, o que se justifica pela contemporaneidade e pelo facto de um dos compositores – Frei José Marques e Silva – possuir diversas obras de sua autoria, descritas no Catálogo. O solo de órgão, cujo autor é desconhecido, foi gravado na Igreja de São Roque, no extraordinário órgão de 1784, obra de António Xavier Machado Cerveira para o Convento de São Pedro de Alcântara e no século XIX transferido para a Igreja de São Roque, objeto de estudo de notas soltas já publicadas.
Em 1989, a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa iniciou no campo da difusão musical, uma temporada de música, designada «Música em São Roque» que em mais de 30 anos tem permitido a divulgação de partituras inéditas de autores portugueses, da idade média à época moderna, bem como agrupamentos musicais e diferentes interpretes.
Em 2014, na celebração dos 516 anos da fundação da Misericórdia de Lisboa e no contexto da Exposição “VISITAÇÃO – O Arquivo: Memória e Promessa, foi encomendada ao compositor João Madureira, a composição musical “Magnificat, ou a insubmissa voz”, interpretando através da contemporaneidade a obra de Filipe de Magalhães, encomendada pela Misericórdia de Lisboa no século XVI: Filipe de Magalhães (1571-1652), Cantum ecclesiasticum praecibus apud Deum animas juvandi, corporaque humandi defunctorum officium, missam et stationes juxta ritum sacrosanctae romanae ecclesiae omnium ecclesiarum matris et magistrae…, 1691. [Antifonário. Gragual. Processsionário] Antverpiae: apud Henricum A Ertssens. Este “Magnificat Primus Tomus (et Exsultavit)”, de Filipe Magalhães (1571-1652), compositor português que foi mestre do Claustro da Sé de Évora, antes de se fixar em Lisboa, onde dirigiu a Capela da antiga Igreja da Misericórdia e, posteriormente, da Igreja do Paço Real. Filipe de Magalhães, também concebeu diversas partituras inspiradas no Magnificat – as palavras de louvor e alegria que, segundo os Evangelhos, Maria proferiu no momento da Visitação, no encontro com a sua prima Isabel”.
Com a obra o “Magnificat” de João Madureira a Misericórdia de Lisboa procurou uma “revisitação” contemporânea do arquivo, neste caso de uma obra do fundo musical.
Aproxima-se o fim do ano, e com ele a tradição da realização de um Te Deum do fim do mesmo. Promovido pela primeira vez, em 1718, na Igreja de São Roque, pelo Patriarca de Lisboa Dom Tomás de Almeida e patrocinado por D. João V, o grande Te Deum setecentista da Igreja de São Roque, com aparatosos cenários armados na igreja, onde acorria toda a sociedade lisboeta e a própria Família Real, manteve-se por mais de 150 anos, até aos finais do século XIX, sendo recuperado em 2011, parceria da Misericórdia de Lisboa com a Fundação Gulbenkian.
A execução e apresentação pública é a melhor forma de preservar, conservar e divulgar um fundo musical de tantos ainda desconhecido.
Paulo Santos Costa, Serviço de Públicos e Desenvolvimento Cultural